«Bolas, e com isto são quatro da manhã. Mas quem me manda a mim adormecer? E agora? Durmo cá ou vou embora?
Ela está a dormir tão bem. Fica tão bonita, assim. E se acorda e não me vê? Não, não posso sair de mansinho, sem me despedir. Isso não se faz. Mas não me apetece dormir aqui. A cama é pequena e ainda por cima ela é encalorada. Um frio do caraças e ela com a janela aberta. Vou mas é para a minha caminha. Quente! Vou dar-lhe um beijo no ombro e vou-me embora. Deixo um papel na cozinha.
Quer dizer... está-me a saber bem estar aqui. Um pouco apertado, mas aguento. E daqui a pouco ela acorda e lá vamos começar tudo outra vez... Digo eu... Eu gostava... Depois adormecemos e retomamos... Estas noites são cansativas, mas sabem bem... Se calhar fico.
Não! Não pode ser. Mas quantos anos é que eu tenho? Pareço um miúdo. Já tenho idade para saber que isto não é assim. Isto não são favas contadas. Não se fica a dormir em casa de alguém na primeira vez, a menos que sejamos convidados. Só se ela tivesse dito alguma coisa. Se calhar disse, mas eu já estava a dormir e não ouvi. Que coisa, esta, de os homens adormecerem logo depois do sexo. Acho que ainda me aguentei uns minutos com conversa e festinhas no cabelo, mas depois apaguei. Fogo, que mau aspeto.
Ainda por cima estou constipado, já devo ter ressonado, e tudo. Ressonar na primeira noite que se passa com alguém é uma coisa bonita, sim senhor. Amanhã, quando ela telefonar a alguma amiga e falar disto, de certeza que vai dizer que eu ressono.
E se eu deixar um recado na casa de banho? Escrevo no espelho, com bâton dela. E escrevo o quê? «Fui para casa porque não me perguntaste se eu queria cá dormir»? «Fui para casa porque estou constipado e não te quero pegar a tosse»? «Fui para casa porque a tua cama é estreitinha e tu és espaçosa»? A cama é dela, ela dorme como lhe apetece. Nestas coisas, o dono da casa fica sempre em vantagem. Amanhã vai acordar na cama dela, na casa dela. Não tem de pensar em nada disto. Eu é que estou para aqui indeciso, e a fazer uma ginástica do caraças, a tentar não ir parar ao chão.
Vou virar-me para fazer conchinha. Mas assim vou acordá-la. Não era mal pensado, acordá-la. Pelo menos resolvia-se isto do ir ou ficar. Não, deixa-a estar. Está tão ferrada no sono.
Às tantas ela acorda de manhã, olha para mim e faz aquela cara: "Mas o que é que este gajo ainda está aqui a fazer?" E se me pergunta alguma coisa? O que é que eu digo? "Ah, e tal, não fui embora porque não sabia que era para ir embora."
Já sei. Acordo mais cedo e preparo-lhe o pequeno-almoço. Faço umas torradas. E um sumo de laranja. E se ela não tem pão? Nem laranjas? Posso ir comprar. E depois como é que eu entro em casa? Se calhar ela é daquelas que não gosta de sumos. De manhã só bebe café. Além disso, não me vou pôr para aí a abrir os armários. Se ela acorda com o barulho dos armários dela e um gajo a cirandar na cozinha, pode não gostar.
Se calhar estou a pensar demais. Estou a complicar. Vou ficar. Que se lixe. Ela deve querer que eu fique também.»
....................
«Mas este gajo não para quieto? Na única altura que não se estava a mexer, estava a ressonar. Irra! Ainda por cima queria conversa depois do sexo. Eu a querer dormir e o gajo a fazer-me festas. Não há pachorra. Ou me agarra de uma vez, ou pega nas calças e vai para casa.»
(Paulo Farinha, in Diário de Notícias Magazine)